«[N]essas
horas apoderava-se dela um leve inebriamento
e
uma plenitude de vida, os pensamentos, mesmo os das coisas mais banais,
afastavam-se
da superfície e mergulhavam nas profundezas
e
os acontecimentos do mundo soavam distantes
como
o ruído para lá dos muros do jardim.»
O lugar é uma mancha
oblíqua delineada no centro do mapa da cidade. Nesse estado de puro traço
permanece, à margem. A margem é o seu reduto, o último, espaço de resistência
para o grito entre as tempestades cíclicas. Também o seu silêncio. O que
podemos ver quando nele decidimos entrar — decisão que implica a ponderação
séria dos riscos (?) —, ou quando olhamos as imagens que dele depois
construímos para o reafirmar, sugere-nos a ideia de que este lugar poderá ter
sido pensado, desenhado e criado única e exclusivamente como destino para todos
aqueles que nele se atrevam a entrar com um único propósito — esquecer, mesmo
que por instantes, o mundo que resta para lá dos muros invisíveis. Só desta
maneira serão capazes de escutar o que essa ausência liberta.
•
«Agora é a tua vez», disse. «Terás de ser tu a recolher os vestígios, as imagens que queimam; apenas essas contam, apenas essas podem ser impressas. Não esqueças as palavras dos dias passados, as mesmas de hoje: “o negro do grito queima o branco”».
Não esqueci. Recordei ao longe a experiência vaga de um lugar à margem do tempo, circular, ausente o tumulto das memórias. «Não há nenhum portão, mas nós não entramos», dizem. Dizer não a isto. Urgente retomar o outro caminho. Todos os dias, pela manhã, não cedo. Entro.
•
Para aí chegar, percorro o canal aberto na terra abandonada, plena de restos, de vida em suspenso, de sombras pétreas fracturadas, decapitadas, restos de crânios vegetais sussurrando num horizonte de raízes sufocadas. No final, o canto das águas subterrâneas apaziguará a inquietação do olhar que vinha acompanhando os passos — em volta, o ritmo das sombras quietas falará mais alto.
•
O espanto é um ponto de fractura que irrompe súbito no
movimento do pensamento — abala-o, suspende um nexo, abre um intervalo. O
movimento gerado à volta de um ponto em suspensão cria sempre um
rasto, uma linha que se fecha e abre em círculo quando repete, por exemplo, os
tons de uma dança hipnótica, a espiral absorvendo a vertigem. Uma pausa. O
silêncio instala-se no centro que o círculo em negro desenha, cerca.
«Escuta a respiração lenta da luz que dessa fenda brota.»
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O momento desejado é agora. Quando o tempo do mundo da cidade se cala, vive-se o silêncio de uma ausência que se deseja, as memórias apagadas, a impossibilidade da imagem, o tempo que as palavras não podem dizer, não sabem por que esqueceram a hipótese da linha que traça a diferença, a oposição que instaura o sentido. O pensamento, esse, inspira, em repouso, o sopro vital que aqui tudo atravessa: «apesar de tudo / continuamos a repetir os gestos e a beber / a serenidade da seiva — vamos pela febre / dos cedros acima — até que tocamos o místico / arbusto estelar / e / o mistério da luz fustiga-nos os olhos / numa euforia torrencial».
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Sempre que saio sinto que trago inscritos sob a pele os esboços ingénuos de algumas imagens — aquelas que, imagino, me darão mais tarde a possibilidade de continuar a ser no tempo deste mundo em que arrisco.
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Respiro a manhã húmida no ar que me atravessa e inspiro-me, literalmente, no sopro que preenche este assombroso silêncio vegetal; nele permaneço, como suspenso, entre dois tempos e duas tempestades.
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Eles – os que me pensaram – não sabem, mas eu, sendo parte de um destino que
lhes escapa, resisto. Mesmo nas ruínas, brotando a uma cadência cada vez mais
regular nos caminhos que me cruzam; ou mesmo nas clareiras, iluminando
silenciosas o desespero da noite cerrada. E
embora umas e outras se assemelhem a feridas
expostas às intempéries provocadas pelo esquecimento dos homens, pela sua vertigem sem
assombro, mesmo assim, nessa condição de puro vestígio, elas são ainda a
maneira de o meu tempo se abrir na dimensão única que só assim pode ser
livre.
Os textos são da autoria de António Alves Martins, com as seguintes excepções: a epígrafe no verso da capa é de Robert Musil (O Homem Sem Qualidades, tradução de João Barrento, Dom Quixote, 2017, vol. 1, p. 154); a citação que começa «apesar de tudo» foi retirada do poema «Vestígios», de Al Berto (O Medo, Assírio & Alvim, 1997, p. 578); a citação «Não há nenhum portão, mas nós não entramos», foi retirada de um artigo da autoria de Rafael Vieira, intitulado «A Sereia que todos queremos e desejamos», publicado por Coimbra Coolectiva, em 28 de julho de 2022, e disponível online em https://coimbracoolectiva.pt/2022/07/28/jardins-da-cidade/.