A conversa aconteceu a 31 de março de
2022. O desafio era tentar perceber o sentido que tem “a publicação, em
2021, de um livro com fotografias (datadas do início dos anos 1990) de um lugar
circunscrito a uma área específica da Grande Lisboa, um lugar que quase nada
dirá ao resto do país?”.
Depois das boas-vindas dadas por Jorge Gouveia
Monteiro – o grande dinamizador do lugar-espaço que acolhia a conversa, o
Liquidâmbar –, os quatro participantes lançaram-se à conversa: António Alves
Martins (o editor da publicação em causa), Duarte Belo (o autor das fotografias
que compõem a publicação), Isabel Calado (pelo estudo do mundo da cultura
visual) e José António Bandeirinha (pela dedicação, arrisco “amorosa”, às
questões da cidade, da arquitectura das casas e, por que não dizê-lo, dos
livros).
Na sala, além de Paulo Costa Góis – que
registou com a sua câmara fotográfica o momento – e de Jorge Gouveia Monteiro,
mais cinco pessoas. Poucas, em relação ao que se esperava, mas mais que
suficientes para que pudéssemos responder ao desafio, isto é, encontrar “o”
sentido para a publicação de Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos de Duarte Belo [Artes Breves Edições, Coimbra, 2021].
O editor recordou a “linha em construção” em que a publicação se insere, assim como algumas das palavras que compõem a folha impressa que a integra (texto disponível aqui); Duarte Belo frisou a sua não autoria (da edição), a produção tranquila da obra (enquanto autor das fotografias), não deixando de proferir algumas palavras acerca do tempo e do lugar das fotografias (nos idos de 1990); Isabel Calado leu o texto que a seguir se publica; José António Bandeirinha divagou acerca da existência das metrópoles, das periferias e da ruralidade, isto sem deixar de mencionar a “arquitectura” do livro e terminando com a leitura de um dos extractos do poema “Canto Vesperal”, de Ruy Belo, incluídos na publicação (ver síntese da intervenção impressa abaixo junto com uma gravação feita posteriormente).
A
conversa passou da mesa para a sala e da sala para a mesa, circulando, e o sentido da publicação continuou a ser
desvendado: falou-se de edição de livros, de fotografia, de viagem, de
território, de metrópoles, de despovoamento, do grotesco e do caos de algumas zonas do território português…
Parafraseando John Berger: “O sentido encontra-se nas relações que se constroem”; isto é, o sentido nasce quando se estabelecem pontos de contacto entre fragmentos dispersos, quando o pensamento e as palavras que o vão constituindo se lançam em liberdade no risco do ensaio.
O sentido da publicação de um livro encontra-se aqui, nas possibilidades que o ideal e material, impresso, dá à emoção e ao pensamento, primeiro no acto solitário e corporal da leitura, depois no gesto que se abre quando a leitura é partilhada; é aí que o horizonte incerto imanente à obra ganha complexidade, movimento, novas articulações – torna-se político, quando vivido nos lugares materiais da própria cidade.
Vestígios
Segue-se uma síntese, escrita, da intervenção de José António Bandeirinha – que agarra as vozes-mãos presentes na publicação (do editor, do autor das fotografias e do autor dos versos), o texto, lido na ocasião, de Isabel Calado, e, a finalizar, uma breve selecção das fotografias de Paulo Costa Góis.
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CONVERSA
À VOLTA DE UM LIVRO
Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos
de Duarte Belo
31 de
Março de 2022 | 18:00-19:30 [20:00]
José António Bandeirinha
O livro Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos de Duarte Belo é uma obra
composta por três poetas. O António Alves Martins é um poeta da edição, não só
da edição das palavras, mas também, e neste caso sobretudo, um poeta da
construção do objecto, da materialidade do livro. Desde a capa ao tipo de
papel, desde os enquadramentos até à criteriosa disposição de imagens e textos,
tudo na edição se adequa à presença dos outros autores. Chega a fingir que é
casual a subtileza que deveras sente ao compor as suas edições, por isso é
poeta.
O
Duarte Belo é um poeta da imagem, consegue que as suas fotografias nos penetrem
muito para além da mera “visualização”, como se diz hoje. Sentimos os sons e os
silêncios, sentimos o tempo e os tempos, sentimos o conforto e o desconforto,
por vezes até o frio e o vento. Não sei se existe Deus, mas se existe alguma
coisa a que possamos chamar “portugalidade”, ela também está lá, guardada num
arquivo com mais de quarenta tera. Ninguém a pode contestar.
Do Ruy Belo, poeta poeta, e das palavras extraídas do poema “Canto Vesperal”, tudo o que eu poderia dizer para além da sua leitura seria de uma ousadia que eu não tenho. Por isso leio:
Monte Abraão: o movimento das imagens silenciosas
Isabel Calado
O que primeiro vejo nestas
fotografias é o olhar do fotógrafo. Nesse sentido,
o impacto que estas imagens
têm em mim é um pouco o inverso daquilo
que normalmente nos acontece quando vemos
uma fotografia (nomeadamente uma fotografia que, pese embora o seu poder
estético, tem um pendor documental); o que nos acontece
é que a ouvimos dizer:
“eis a realidade”. Neste caso, é
como se o que vemos nos dissesse: “eis o que não verias da realidade se eu não tivesse estado lá.”
Logo a seguir vejo o que vejo nas imagens
que me são mostradas: lugares do lado de cá e do lado de lá (que é o horizonte), horizontes onde anoitece e amanhece, pedaços do mundo
desenhados pela luz e pelas sombras, o claro-escuro que é instável, transforma os lugares e
ainda bem, interioridades expandidas e exterioridades contidas – um jogo
incessante entre o fora e o dentro que é uma
rejeição da clausura e uma procura da identidade.
Volto um passo atrás: as imagens de Monte Abraão
traduzem, no meu entender, um ato de apoderamento do
território, da paisagem, do objeto. A câmara
do Duarte Belo criou com estas realidades uma intimidade que não é acessível ao olhar nu
e que, ainda assim, ironia das palavras, serve para tocar sensorialmente troços do mundo antes negligenciados.
Primeiro ou já segundo paradoxo: grande parte das imagens retratam
o abandono, dando-lhe um lugar na ribalta, projetando sobre ele uma luz,
acolhendo-o, integrando-o.
Neste sentido, o olhar começa por ser háptico. O olhar da pele, o olhar da sensibilidade, o olhar que se deixa
tocar, mas sobretudo que toca ele também. Até um certo
ponto afastado do que poderia
ser um mero registo documental, este contacto haptisch diminui a distância entre o sujeito e o
objeto do olhar, elimina a rutura
inerente à representação e torna-se
contacto, apalpação.[i]
Adulterando
um pouco a célebre frase de Goethe, eu diria: “existe uma forma delicada de olhar que se identifica tão intimamente com o seu objeto
que com isso cria uma imagem”.[ii]
Mas há aqui também um olhar
óptico/optish: o olhar que pensa, que se interroga perante o que vê, o olhar que lê o que
pode ser lido e traduz isso numa imagem. O olhar que revela, como eu dizia a propósito de um outro conjunto de fotos do Duarte
atualmente exposto no Museu Nacional
de Arte Contemporânea do Chiado. É aí que as fotografias adquirem a sua dimensão
documental e de arquivo. Então o nosso olhar vasculha-as, procurando o que está lá para ser descoberto, os indícios de um certo tempo e de um certo
espaço: a cidade e os seus arrabaldes, a época do edificado, dos automóveis, dos espaços de habitação e dos que aparentam estar afastados
da
vida das gentes (aliás uma única personagem humana aparece na série de fotos, se não contarmos com a que aparece ou assoma na última foto).
Sem dúvida
que estas fotografias contêm informação. Em que dose?... pouco interessa, até
porque as imagens em causa parecem resistir àquilo a que Friedlander se referia como “os trastes”
da fotografia – digamos, a quantidade de informação não desejada
que ela consegue por vezes desencadear nos seus percursos de divulgação, na sua
deriva.
Imagens também que, como bem sentiu o António Alves Martins, convocam o silêncio do mundo.
E isso não exclui a perceção, talvez
contrária ou simplesmente uma vez mais paradoxal, de que o que aqui se fotografa
– o tempo –, é
também ruído. Pois que o
tempo é memória e a memória não é silenciosa. E convém lembrar, a propósito, que, como disse Roland Barthes,
“o ruído do tempo não é triste”.
Mas regresso ao silêncio das imagens. Está ligado a ele um certo tipo, não
predominante é certo,
de imagens fixas,
como alguns quadros e algumas
fotografias que, ao contrário do que fazem as palavras
num livro ou as
imagens em movimento num filme,
expõem um silêncio, digamos assim, não interrompido. O sentido dessas “imagens nuas” (foi assim que lhes chamou o José Gil) não está
preso nelas e é gerado pela sua entrada em circulação. Os sentidos que podem desencadear são então transmissíveis e facilmente
manipuláveis: elas prestam-se a ser usadas
para articular pontos
de vista, pensamentos, perspetivas que não estão nelas, mas no olhar de quem as vê ou interpreta.
É o olhar que se move, que percorre a imagem fixa,
que a movimenta: fixando um detalhe,
e depois outro (e esse zoom in aqui
e depois ali pode, só por si, alterar-lhe o significado).
É o
olhar que interroga o que vê e
que procura informação sobre o referente
da imagem, caso exista. E nas
fotografias isso acontece.
Nelas, como é sabido e até exposto
em algumas das telas de René Magritte, “o referente adere”.
Temos ainda que este conjunto de fotos forma uma série. Este é um adicional que
igualmente constitui um fator da poética visual
destas imagens, isto é, da sua
construção de significado. É a série que também
nos dá a dimensão do caminho e da narrativa. Aliás as imagens
do solo e dos trilhos
e dos carris da ferrovia são uma visão recorrente nestas
fotografias. É como se o fotógrafo
tivesse também
olhos nos pés e as imagens estáticas ganhassem movimento.
Em terceiro lugar,
o sentido deste
conjunto de imagens
é também modelado pela dimensão editorial do livro
que as insere na cadeia de
reprodução (embora em edição
limitada). E não me refiro
apenas à chamada
dos textos para darem
a sua contribuição, mas às opções editoriais sobre quando e quais
e onde e com que design gráfico
eles se juntam às imagens: o título – que cita Raul
Brandão – do texto de abertura
da autoria de António Alves Martins (pese embora
num destacável... não descartável) e as do “Canto Vesperal”, de Ruy Belo.
Primeiro as imagens
apropriaram-se do território; depois as palavras apropriaram-se das imagens,
que estavam silenciosas,
mas talvez também inquietas. Que estavam
talvez à espera das palavras... e elas chegaram, para o bem e para o mal, invadindo
as imagens que apenas existiam
no olhar do fotógrafo, e fizeram-nas falar outras línguas:
muito mais as dos mundos interiores de cada um dos falantes,
e do editor, que a do autor das imagens que, como mostra a última
foto, numa espécie de assinatura visual, fantástica de resto, se apropriou das formas e da luz dos caminhos
palmilhados para construir a
imagética de um território externo.
Obviamente, qualquer imagética provém do interior
e a ele regressa. Assim, a
referência à exterioridade da fotografia é apenas a referência ao seu ponto de apoio. No caso de Duarte Belo,
cujo levantamento fotográfico do território português tem quase dois milhões
de fotografias, bem poderia
ele plagiar Arquimedes: deem-me
os pontos de apoio e levantarei o mundo.
Suponho aliás que a inerência
da interiorização no processo sai reforçada
pela inclusão das captações fotográficas das estantes repletas
de livros dentro da casa de Ruy Belo: duas
realidades, a da casa e a dos livros, que só fazem sentido se entrarmos
nelas.
Bem
sei que as palavras se assumem nesta obra como não-legendas, do mesmo
modo que se diz que as imagens
não são ilustrações, mas inevitavelmente as duas entradas (para quê?, pergunto... e respondo: para a
imaginação do leitor) contaminam-se mutuamente. É como se, ao
enquadramento das fotografias, se somasse a moldura das palavras que as
rodeiam, que as espreitam, que se deixaram
seduzir por elas.
Não
tenho dúvidas de que as imagens saem enaltecidas pela presença das palavras e outra não foi a intenção deste projeto; desde sempre umas e outras se
atraíram mutuamente e é longa a história da sua cumplicidade. Mas eu terminaria desejando
que, agora que o livro
já está em circulação, as imagens nele contidas consigam ainda
proteger algum do seu
silêncio e oferecer um pouco da sua virgindade a cada observador/leitor.
[i] A aliteração “optish/haptisch” foi proposta em história da arte por Riegl e Berenson (Haptish, la caresse de l’oeil. Les Cahiers du Musée de l’abbaye Sainte Croix, 75, 1993).
[ii] “Existe uma forma delicada do empírico que se identifica tão intimamente com seu objeto que com isso se torna teoria”.
CONVERSA À VOLTA DE UM LIVRO
Uma Selecção das Fotografias
de Paulo Costa Góis