terça-feira, 5 de abril de 2022

conversa à volta de um livro: monte abraão, fragmentos dos cadernos de duarte belo




A conversa aconteceu a 31 de março de 2022. O desafio era tentar perceber o sentido que tem “a publicação, em 2021, de um livro com fotografias (datadas do início dos anos 1990) de um lugar circunscrito a uma área específica da Grande Lisboa, um lugar que quase nada dirá ao resto do país?”.

Depois das boas-vindas dadas por Jorge Gouveia Monteiro – o grande dinamizador do lugar-espaço que acolhia a conversa, o Liquidâmbar –, os quatro participantes lançaram-se à conversa: António Alves Martins (o editor da publicação em causa), Duarte Belo (o autor das fotografias que compõem a publicação), Isabel Calado (pelo estudo do mundo da cultura visual) e José António Bandeirinha (pela dedicação, arrisco “amorosa”, às questões da cidade, da arquitectura das casas e, por que não dizê-lo, dos livros).

Na sala, além de Paulo Costa Góis – que registou com a sua câmara fotográfica o momento – e de Jorge Gouveia Monteiro, mais cinco pessoas. Poucas, em relação ao que se esperava, mas mais que suficientes para que pudéssemos responder ao desafio, isto é, encontrar “o” sentido para a publicação de Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos de Duarte Belo [Artes Breves Edições, Coimbra, 2021].

O editor recordou a linha em construção em que a publicação se insere, assim como algumas das palavras que compõem a folha impressa que a integra (texto disponível aqui); Duarte Belo frisou a sua não autoria (da edição), a produção tranquila da obra (enquanto autor das fotografias), não deixando de proferir algumas palavras acerca do tempo e do lugar das fotografias (nos idos de 1990); Isabel Calado leu o texto que a seguir se publica; José António Bandeirinha divagou acerca da existência das metrópoles, das periferias e da ruralidade, isto sem deixar de mencionar a “arquitectura” do livro e terminando com a leitura de um dos extractos do poema “Canto Vesperal”, de Ruy Belo, incluídos na publicação (ver síntese da intervenção impressa abaixo junto com uma gravação feita posteriormente).

A conversa passou da mesa para a sala e da sala para a mesa, circulando, e o sentido da publicação continuou a ser desvendado: falou-se de edição de livros, de fotografia, de viagem, de território, de metrópoles, de despovoamento, do grotesco e do caos de algumas zonas do território português…

Parafraseando John Berger: “O sentido encontra-se nas relações que se constroem”; isto é, o sentido nasce quando se estabelecem pontos de contacto entre fragmentos dispersos, quando o pensamento e as palavras que o vão constituindo se lançam em liberdade no risco do ensaio.

O sentido da publicação de um livro encontra-se aqui, nas possibilidades que o ideal e material, impresso, dá à emoção e ao pensamento, primeiro no acto solitário e corporal da leitura, depois no gesto que se abre quando a leitura é partilhada; é aí que o horizonte incerto imanente à obra ganha complexidade, movimento, novas articulações – torna-se político, quando vivido nos lugares materiais da própria cidade.

 

Vestígios

 

Segue-se uma síntese, escrita, da intervenção de José António Bandeirinha – que agarra as vozes-mãos presentes na publicação (do editor, do autor das fotografias e do autor dos versos), o texto, lido na ocasião, de Isabel Calado, e, a finalizar, uma breve selecção das fotografias de Paulo Costa Góis.


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CONVERSA À VOLTA DE UM LIVRO

Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos

de Duarte Belo

31 de Março de 2022 | 18:00-19:30 [20:00]

  

José António Bandeirinha


O livro Monte Abraão, Fragmentos dos Cadernos de Duarte Belo é uma obra composta por três poetas. O António Alves Martins é um poeta da edição, não só da edição das palavras, mas também, e neste caso sobretudo, um poeta da construção do objecto, da materialidade do livro. Desde a capa ao tipo de papel, desde os enquadramentos até à criteriosa disposição de imagens e textos, tudo na edição se adequa à presença dos outros autores. Chega a fingir que é casual a subtileza que deveras sente ao compor as suas edições, por isso é poeta.

O Duarte Belo é um poeta da imagem, consegue que as suas fotografias nos penetrem muito para além da mera “visualização”, como se diz hoje. Sentimos os sons e os silêncios, sentimos o tempo e os tempos, sentimos o conforto e o desconforto, por vezes até o frio e o vento. Não sei se existe Deus, mas se existe alguma coisa a que possamos chamar “portugalidade”, ela também está lá, guardada num arquivo com mais de quarenta tera. Ninguém a pode contestar.

Do Ruy Belo, poeta poeta, e das palavras extraídas do poema “Canto Vesperal”, tudo o que eu poderia dizer para além da sua leitura seria de uma ousadia que eu não tenho. Por isso leio:



 

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Monte Abraão: o movimento das imagens silenciosas

 

Isabel Calado


O que primeiro vejo nestas fotografias é o olhar do fotógrafo. Nesse sentido, o impacto que estas imagens têm em mim é um pouco o inverso daquilo que normalmente nos acontece quando vemos uma fotografia (nomeadamente uma fotografia que, pese embora o seu poder estético, tem um pendor documental); o que nos acontece é que a ouvimos dizer: “eis a realidade”. Neste caso, é como se o que vemos nos dissesse: “eis o que não verias da realidade se eu não tivesse estado lá.”

Logo a seguir vejo o que vejo nas imagens que me são mostradas: lugares do lado de e do lado de (que é o horizonte), horizontes onde anoitece e amanhece, pedaços do mundo desenhados pela luz e pelas sombras, o claro-escuro que é instável, transforma os lugares e ainda bem, interioridades expandidas e exterioridades contidas – um jogo incessante entre o fora e o dentro que é uma rejeição da clausura e uma procura da identidade.

Volto um passo atrás: as imagens de Monte Abraão traduzem, no meu entender, um ato de apoderamento do território, da paisagem, do objeto. A câmara do Duarte Belo criou com estas realidades uma intimidade que não é acessível ao olhar nu e que, ainda assim, ironia das palavras, serve para tocar sensorialmente troços do mundo antes negligenciados.

Primeiro ou segundo paradoxo: grande parte das imagens retratam o abandono, dando-lhe um lugar na ribalta, projetando sobre ele uma luz, acolhendo-o, integrando-o.

Neste sentido, o olhar começa por ser háptico. O olhar da pele, o olhar da sensibilidade, o olhar que se deixa tocar, mas sobretudo que toca ele também. Até um certo ponto afastado do que poderia ser um mero registo documental, este contacto haptisch diminui a distância entre o sujeito e o objeto do olhar, elimina a rutura inerente à representação e torna-se contacto, apalpação.[i]

Adulterando um pouco a célebre frase de Goethe, eu diria: “existe uma forma delicada de olhar que se identifica tão intimamente com o seu objeto que com isso cria uma imagem”.[ii]

Mas há aqui também um olhar óptico/optish: o olhar que pensa, que se interroga perante o que vê, o olhar que lê o que pode ser lido e traduz isso numa imagem. O olhar que revela, como eu dizia a propósito de um outro conjunto de fotos do Duarte atualmente exposto no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado. É que as fotografias adquirem a sua dimensão documental e de arquivo. Então o nosso olhar vasculha-as, procurando o que está para ser descoberto, os indícios de um certo tempo e de um certo espaço: a cidade e os seus arrabaldes, a época do edificado, dos automóveis, dos espaços de habitação e dos que aparentam estar afastados da vida das gentes (aliás uma única personagem humana aparece na série de fotos, se não contarmos com a que aparece ou assoma na última foto).

Sem dúvida que estas fotografias contêm informação. Em que dose?... pouco interessa, até porque as imagens em causa parecem resistir àquilo a que Friedlander se referia como “os trastes” da fotografia digamos, a quantidade de informação não desejada que ela consegue por vezes desencadear nos seus percursos de divulgação, na sua deriva.

Imagens também que, como bem sentiu o António Alves Martins, convocam o silêncio do mundo. E isso não exclui a perceção, talvez contrária ou simplesmente uma vez mais paradoxal, de que o que aqui se fotografa o tempo –, é também ruído. Pois que o tempo é memória e a memória não é silenciosa. E convém lembrar, a propósito, que, como disse Roland Barthes, “o ruído do tempo não é triste”.

Mas regresso ao silêncio das imagens. Está ligado a ele um certo tipo, não predominante é certo, de imagens fixas, como alguns quadros e algumas fotografias que, ao contrário do que fazem as palavras num livro ou as imagens em movimento num filme, expõem um silêncio, digamos assim, não interrompido. O sentido dessas “imagens nuas” (foi assim que lhes chamou o José Gil) não está preso nelas e é gerado pela sua entrada em circulação. Os sentidos que podem desencadear são então transmissíveis e facilmente manipuláveis: elas prestam-se a ser usadas para articular pontos de vista, pensamentos, perspetivas que não estão nelas, mas no olhar de quem as vê ou interpreta.

É o olhar que se move, que percorre a imagem fixa, que a movimenta: fixando um detalhe, e depois outro (e esse zoom in aqui e depois ali pode, só por si, alterar-lhe o significado). É o olhar que interroga o que e que procura informação sobre o referente da imagem, caso exista. E nas fotografias isso acontece. Nelas, como é sabido e até exposto em algumas das telas de René Magritte, “o referente adere”.

Temos ainda que este conjunto de fotos forma uma série. Este é um adicional que igualmente constitui um fator da poética visual destas imagens, isto é, da sua construção de significado. É a série que também nos a dimensão do caminho e da narrativa. Aliás as imagens do solo e dos trilhos e dos carris da ferrovia são uma visão recorrente nestas fotografias. É como se o fotógrafo tivesse também olhos nos pés e as imagens estáticas ganhassem movimento.

Em terceiro lugar, o sentido deste conjunto de imagens é também modelado pela dimensão editorial do livro que as insere na cadeia de reprodução (embora em edição limitada). E não me refiro apenas à chamada dos textos para darem a sua contribuição, mas às opções editoriais sobre quando e quais e onde e com que design gráfico eles se juntam às imagens: o título – que cita Raul Brandão – do texto de abertura da autoria de António Alves Martins (pese embora num destacável... não descartável) e as doCanto Vesperal”, de Ruy Belo.

Primeiro as imagens apropriaram-se do território; depois as palavras apropriaram-se das imagens, que estavam silenciosas, mas talvez também inquietas. Que estavam talvez à espera das palavras... e elas chegaram, para o bem e para o mal, invadindo as imagens que apenas existiam no olhar do fotógrafo, e fizeram-nas falar outras línguas: muito mais as dos mundos interiores de cada um dos falantes, e do editor, que a do autor das imagens que, como mostra a última foto, numa espécie de assinatura visual, fantástica de resto, se apropriou das formas e da luz dos caminhos palmilhados para construir a imagética de um território externo.

Obviamente, qualquer imagética provém do interior e a ele regressa. Assim, a referência à exterioridade da fotografia é apenas a referência ao seu ponto de apoio. No caso de Duarte Belo, cujo levantamento fotográfico do território português tem quase dois milhões de fotografias, bem poderia ele plagiar Arquimedes: deem-me os pontos de apoio e levantarei o mundo.

Suponho aliás que a inerência da interiorização no processo sai reforçada pela inclusão das captações fotográficas das estantes repletas de livros dentro da casa de Ruy Belo: duas realidades, a da casa e a dos livros, que só fazem sentido se entrarmos nelas.

Bem sei que as palavras se assumem nesta obra como não-legendas, do mesmo modo que se diz que as imagens não são ilustrações, mas inevitavelmente as duas entradas (para quê?, pergunto... e respondo: para a imaginação do leitor) contaminam-se mutuamente. É como se, ao enquadramento das fotografias, se somasse a moldura das palavras que as rodeiam, que as espreitam, que se deixaram seduzir por elas.

Não tenho dúvidas de que as imagens saem enaltecidas pela presença das palavras e outra não foi a intenção deste projeto; desde sempre umas e outras se atraíram mutuamente e é longa a história da sua cumplicidade. Mas eu terminaria desejando que, agora que o livro está em circulação, as imagens nele contidas consigam ainda proteger algum do seu silêncio e oferecer um pouco da sua virgindade a cada observador/leitor.



[i] A aliteração “optish/haptisch” foi proposta em história da arte por Riegl e Berenson (Haptish, la caresse de l’oeil. Les Cahiers du Musée de l’abbaye Sainte Croix, 75, 1993).

[ii] “Existe uma forma delicada do empírico que se identifica tão intimamente com seu objeto que com isso se torna teoria”.

 


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CONVERSA À VOLTA DE UM LIVRO

Uma Selecção das Fotografias 

de Paulo Costa Góis