quinta-feira, 1 de abril de 2021

acerca da origem das imagens da série «cenas de um mundo abissal», prólogo ao projecto «as imagens entre as linhas»

 



«[as] imagens do mundo interno antigo são os componentes nucleares dos sentimentos

António Damásio, A estranha ordem das coisas

 


«Brincar» assim com imagens de coisas, à partida, tão sérias, será esquecer o mundo? Não haverá imagens mais urgentes a construir, mais necessárias e responsáveis como resposta à cruel realidade do mundo?  Não, nem por isso.

Quando aqui digo mundo, quero dizer não só a realidade humana, natural, material e ideal que está aí, em torno e onde somos, mas também aquela que, à primeira vista e naturalmente, não vemos, essa mesma que, e também naturalmente, sentimos, muitas vezes de uma maneira insuportável: falo do nosso mundo interno, orgânico, o mundo dito antigo – o mundo das nossas vísceras.

Um mundo que embora não observável à vista desarmada, pode ser visto quando captado com a cumplicidade de determinados aparelhos que o sabem escutar e agarrar; neste meu caso particular, transformando ultrassons em traços, em linhas que trazem à tona um desenho colocado à disposição do nosso olhar, primeiro em formato de imagem digital, depois em imagem impressa, em papel: uma imagem ecográfica – o mundo antigo enquanto imagem.

Foi uma dessas impressões que esteve na origem desta minha brincadeira, gesto que traduz uma atitude muito séria se pensarmos que estamos no domínio da fotografia, entendida essencialmente como manipulação de formas-reflexos-sombras com vista à criação de novas possibilidades visuais, novas materialidades, emocionalmente substantivas.

Poder dar visibilidade a esse mundo interno, invisível e estranho, no exterior material da folha impressa a partir de uma imagem agarrada pelo aparelho (aqui, uma influência da leitura do pensamento de Vilem Flusser em «A filosofia da caixa preta»), foi o sentido que lentamente emergiu após ter dado início ao jogo, fruto de uma necessidade específica – resolver um problema –, nascida no contexto de limitações da deambulação urbana, ainda consequência do estado de emergência/pandemia covid-19. Mais uma vez, desenhar o novo a partir do arquivo, da memória do antigo, do muito antigo.

~

«As imagens entre as linhas [em movimento]», é o nome do projecto que pretendo desenvolver no âmbito da edição 2021 da EIF Escola Informal de Fotografia (uma iniciativa da fotógrafa Susana Paiva). Nele, procuro colocar em relação os domínios da palavra escrita – tendo como base os textos de Gonçalo M. Tavares da obra O Bairro e da imagem fotográfica. A ideia é criar um objecto – impresso em papel e associado a uma pequena videoinstalação – que abra para um momento estético no qual a prevalência de qualquer uma daquelas linguagens seja diluída. Procurar criar, assim, um discurso-experiência material em que o leitor-espectador consiga fruir uma experiência única, perdendo – esquecendo – as amarras de segurança do texto e da imagem codificados como instâncias de sentido único. Se o vou conseguir, não sei; certo é que não posso deixar de o tentar, já que, e como diria o senhor Kraus, «O que importa é o movimento».

Nada à partida está garantido. Nem mesmo as palavras de Gonçalo M. Tavares – preexistentes –, as quais irão ser manipuladas, isto é, seleccionadas, isoladas e colocadas em novas relações dialógicas. Depois, dedicar o tempo a encontrar-criar-produzir imagens de matriz fotográfica, sem nunca esquecer a memória das palavras que sei irá ecoar enquanto for visitando, manuseando e trabalhando imagens preexistentes (sem, em simultâneo, deixar de imaginar outras a produzir), até ao momento em que tanto as palavras como as imagens consigam encontrar um equilíbrio que estabeleça as linhas de criação de uma narrativa circular, mágica, com tempo e espaço em sintonia.

~

Assim, foi como mero exercício de invenção de imagens que me lancei na exploração de uma matriz preexistente – uma imagem ecográfica impressa (uma ecografia abdominal que faz parte do meu arquivo clínico) –, estruturada nos seguintes tempos:

digitalização da imagem impressa em ficheiro jpeg;

limpeza de dados inscritos com a ajuda de ferramenta de desenho digital;

selecção de secções susceptíveis de criarem personagens-situações em contexto dramático;

criação de uma sequência que tem como momento final a divulgação da imagem que esteve na origem da experiência.

No final de tudo, este texto, em jeito de arrumação do pensamento e como complemento à publicação da última imagem da série no blogue nacidadeexposta.blogspot.com[*].

~

Agora, aqui chegado, o que mais fascina é dar-me conta de como a necessidade de testar a solução relativa para um problema específico – encontrar-criar imagens –, despoletou a memória visual da imagem ecográfica, colocou a imaginação em movimento e deu origem a uma série de novas imagens, à publicação das mesmas, individualmente, em espaço público, e, por fim, a este esboço de pensamento, o qual, como não podia deixar de ser, teve de ser escrito.

 

Coimbra, 27 de março – 1 de abril de 2021







cenas de um mundo abissal_7_o baú, 
ou a origem ecográfica da série «cenas de um mundo abissal»