sábado, 6 de março de 2021

A fotografia, a cidade, a oficina



Quando penso no trabalho fotográfico que realizo, vejo-me, quase sempre, a caminhar pelas ruas de uma cidade. Penso a cidade como o espaço privilegiado para dar início a essa acção, a essa prática. 

Quando por ela caminho, por vezes, consigo vê-la. Parece-me que de todas as vezes que o faço, estou a querer repetir aquele momento-movimento inicial de 2016 – uma manhã de sábado, a luz de Lisboa… –, aquele instante em que fui surpreendido por uma insólita perspectiva-paisagem da cidade. Como não levava comigo nenhuma máquina fotográfica – vivia tempos em que essa linguagem estava esquecida – não pude registar aquele olhar. Quando, no dia seguinte, regressei ao mesmo local para tentar captar tão surpreendente vista – agora com uma câmara nas mãos – já não consegui ver, ou reconhecer, o desenho de tão inesperada luz. O que teria visto, perdera-se para sempre.

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Desde esse dia, antes de sair de casa, penso sempre duas vezes: levo ou não levo a máquina? Se a razão de saída é meramente funcional, não a levo; mas se a intenção é deambular pela cidade, não hesito. Estou consciente de que quando saio sem levar a máquina corro o risco de perder inesperados momentos de luz ou perspectivas inusitadas; mas, por outro lado, sei também que se se der o caso de me encontrar perantes novos pontos de vista da cidade, poderei sempre registar num caderno as coordenadas do lugar – a sua ideia? –, de modo a poder regressar mais tarde para tentar captar a imagem intuída. Como bóia de salvação para momentos de insuportável ansiedade, sei que em último recurso poderei contar com a câmara do telemóvel… Há duas imagens que nasceram destas duas possibilidades: uma, a que figura uma janela do antigo Hospital de Arroios, que esperou pacientemente até eu conseguir registar o seu «grito»



 

outra, a de um corrimão em Coimbra, que fiz com a câmara de fraca qualidade de um telemóvel – uma imagem, a cores, que continua a surpreender quem nela repara.




Quando saio para a cidade, com a intenção de fotografar, experimento um tempo muito particular, durante o qual procuro desenvolver um «processo que implica, em primeiro lugar, o assumir da caminhada livre, o movimento de um olhar disponível para o inesperado de um plano e das suas linhas de fronteira; um encontro ou uma escolha que pode determinar, também, a possível duplicação da imagem através da selecção de um pormenor que lhe escapa, se emancipa, tornando a cidade um lugar por vezes demasiado estranho – como se quase já não lhe pertencêssemos»*.

Assim, e antes de mais, liberdade em movimento; depois, o encontro, um certo apaziguamento. Trata-se de uma actividade que procura, nessa deambulação, recolher sinais, marcos para o mapa de uma memória em perda. Guardo essas imagens como provas de vida, como matéria quase em bruto, a matéria que, mais tarde, no silêncio da oficina, será trabalhada, transformada, dando origem a uma outra realidade – aquela que ficará, que permanecerá em resistência, principalmente quando impressa, isto é, quando deixa a sua marca indelével na folha de papel, aberta ao mundo.

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Fora e dentro, exterior e interior, espaço e tempo, matéria e obra, tecnhe e poiesis, transformação e invenção, imagem e palavra, intuição e ideias em combustão. Seleccionar a matéria em bruto, reservar o caos, preparar o arquivo como tempo de suspensão, aguardar o momento do espanto e do assombro a partir do desenho que a luz fez e deixou, esboçado para já.

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Depois do espaço material da cidade, o espaço e o tempo da oficina – a outra parte em que agora me revejo.  É aqui que tem lugar o trabalho de edição das imagens, essencialmente em termos de apuramento de contraste e de luminosidade. Um trabalho que visa, com uma primeira selecção, abrir a possibilidade de construção de séries, de curtas narrativas urbanas, e não só. As imagens que, nesta fase, são de certa maneira deixadas de lado, não ficarão de todo esquecidas. Pelo contrário – no estado de potência em que permanecerão, suspensas, poderão sempre ser convocadas para dar forma a novas realidades.

Com o arquivo, construído com os fragmentos de um mundo pressentido, será sempre possível trabalhar uma outra dimensão da imagem, isto é, elaborar construções com origem em cortes e colagens, imagens híbridas, incertas, inscritas depois num suporte que será ele mesmo passado a imagem, depois de fotografado: as imagens – as nossas e as que outros nos legaram – dentro da imagem.

Por enquanto, cruzo imagens com imagens, palavras com palavras, vou das imagens às palavras e das palavras às imagens. Nesta relação palavra-imagem, o tempo da fotografia pode corresponder ao ponto de suspensão da palavra, o momento em que esta se cala, em que, de certa maneira, experimenta a sua impotência em acompanhar o pensamento que a arrasta enquanto quer ser escrito. Com a fotografia, o pensamento experimenta a sua dimensão material arcaica, dramático na corrente difusa entre as margens da luz e da ausência – olha-se, como o tempo em suspensão do mito.

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Com as diferentes combinações que as imagens e as palavras convocam, aspiro o traçado de um mapa. Desenho-o, na tentativa de me reencontrar, consciente de que o faço para mais tarde poder esquecê-lo, intencionalmente.

Permanecer entre as linhas, entre o verso e o reverso, preto-e-branco, o lugar da penumbra.

De 1 a 7, de 7 a 1, o 1 como 7 e o 7 como 1 – um tempo sem princípio nem fim, um círculo que se quer elipse, torneando caos e ordem.


* Cito do texto da folha de sala da exposição «Na cidade exposta: Coimbra» (Liquidâmbar, março-abril de 2019).

 


antónio alves martins

 

Coimbra, 2-6 de março de 2021