Umbria: por fim, o Sul. é uma viagem imaginária que,
de certa maneira, parece contrariar o horizonte habitual que enquadra as
publicações do projecto Artes Breves Edições, isto é, o retrato impresso em
livro de uma vivência intrinsecamente urbana. Na verdade, em Umbria, trata-se,
por um lado, de um olhar e de um pensamento que circulam entre o exterior e o
interior de uma casa, situada quer numa urbe, quer numa pequena povoação –
ambas de dimensão pouco significativa e ambas retiradas no interior de um
território –, e, por outro, da afirmação de um diálogo íntimo entre o exterior aberto
na excessiva luz da planície litoral e o interior sereno de uma habitação
singela – enquanto domínio –, reivindicando, assim, a penumbra como o tempo essencial
a uma resistência pacífica.
Umbria:
por fim, o Sul.
Toda a gente sabe que o Sul começa ali, naquela margem deste rio.
Nós, aqui, não sabíamos ― vivíamos
a leveza de uma excessiva luz, sem rodeios, nessa estrada cujo fim acontecia onde e como tinha de ser: de costas para o Norte, olhando o Oeste ― no Sul, esse onde tudo começou,
«quando o apelo da noite marcava os ingénuos pássaros diurnos que éramos
experimentando o limite quase perfeito de provocação da morte».
Este livro começa com uma
história de palavras, umas mais antigas, outras nem tanto: primeiro, uma
citação, incontornável na certeza geográfica de um território; depois, a
afirmação, breve mas certeira, de uma juventude agarrada à intensidade da
energia do corpo, da emoção à flor da pele, da entrega à absoluta inconsciência
do instante vivido como eterno retorno nos intervalos violentos, violetas, de
sombra e luz litorais; a rematar, memórias de uma crónica escrita já no início
do século vinte e um ― palavras que remetem para os tempos imediatos à
experiência de Abril: a de uma liberdade livre. A elas se irão juntar,
intercalando-as, as imagens ― quase todas a partir de fotografias, analógicas e
digitais, algumas a outras associadas («coladas», por assim dizer). Por fim, as
palavras marcarão o lugar e o Sul poderá, então, ser aí, como segue.
•
Aquela estrada era via de
sentido único, plano, rectilíneo, veloz ― havia uma pressa cega em chegar. A
chegada era o início de outro movimento, este circular, em espirais de oiro e
azul reacendendo, literalmente, a luz de um oriente perdido ― uma vertigem, um
sem-sentido que escapava às palavras que fluíam mais fortes que os ventos das
tempestades de chumbo, repentinas, ao crepúsculo, olhando um oeste impreciso. O
tempo desse olhar era a antecâmara de um vazio, ainda impossível de vislumbrar
para todos aqueles que viviam imersos nesse ritmo de tão excessivo sentir o
tempo da utopia.
•
Foi o pressentimento de que
esse vazio cego seria raiz de aniquilamento sem remédio que levou Adriano, no
derradeiro regresso do Sul, já com os ritmos dos anos oitenta em fundo, a um
desvio inesperado do rumo que habitualmente tomava. Ao voltar-se, agora, para
leste, escolhia não só o desconhecido do interior do território, mas também de
si mesmo. Arriscava, entregando-se com agradável surpresa à monotonia linear da
paisagem, arrastando-se lento nos seus desníveis ilusórios, vivendo ainda a
turbulência dos sinais que recordavam o mundo urbano de um passado não tão
longínquo. Parou numa cidade que lhe pareceu ter a medida certa ― como, por
exemplo, Mértola. Aí permaneceu por alguns anos, poucos, entre muralhas, numa
casa de divisão única, com um simples postigo aberto na porta de entrada, ponto
exclusivo de uma luz mínima, mas, mesmo assim, demasiado branca. Sabemos que
esses tempos foram também tempos de descoberta de certas palavras, porventura
influência dos vestígios de uma escrita do Sudoeste que imaginara traçada nos
veios das falésias negras daquela praia que deixara, parecia-lhe agora, de vez.
Primeiro, as palavras saíam com a urgência imperativa do vómito que salva da
intoxicação aguda; depois, hesitantes, foram tomando o ritmo sereno e seco que
era o da penumbra interior da casa, como o respirar do seu silêncio, vibrando
nos ínfimos pontos de pó dançando suspensos nos intervalos da luz que penetrava
as frestas do telhado; por fim, quando a rua começou a cobrar o que lhe era
devido (herança de memórias antigas), lançou-se na elaboração refinada de
algumas crónicas, curtas, publicadas, já no século seguinte, ironia das
ironias, por uma editora do Norte (numa das páginas finais, o «editor» dá a
informação de que o caderno manuscrito terá sido encontrado no Hotel
Beira--Rio, provável local de estadia de Adriano nos últimos tempos de
Mértola).
A permanência neste lugar foi um tempo de passagem: das memórias de um litoral alucinante e suicida amarrado à excessiva luz, a um intervalo plano, raso, em que o pensamento se dilui na claridade única e sem sombra da paisagem, até à permanência na penumbra, selando cicatrizes.
A saída da cidade poderá ser descrita como aquele momento de fronteira e abertura em que o arco pressente, tenso, a chegada do arqueiro.
A CAPA E ALGUMAS DAS IMAGENS
E na úmbria
A flecha ― saeta ― deixou o arco.
I
Fizemos a estrada, traçámos a viagem, por fim parámos. E assim, fechando a porta ao calor da excessiva luz ― mas preservando sempre a sua memória em filigrana ―, chegamos ao tão desejado Sul.
II
Mas tudo isto, para ser intrinsecamente real, terá de acontecer dentro da sombra do mundo ― a casa ―, pois só desta maneira o olhar poderá preencher o vazio da paisagem lá fora e recuperar o ritmo dos gestos de uma escrita antiga, inscrita nas pedras milenares das planícies abandonadas.
III
Escuta-se o que não se vê, e o recolhimento, na ilusória imobilidade, abre para o domínio das paisagens interiores repletas de indícios ― vozes, murmúrios, imagens difusas de matérias várias. O Sul não se esgota na imensidão do espaço que então imaginávamos sublime, infinito, inefável. Mais que tudo isso, ele é um tempo, agora vivido como imensidão interior no isolamento da sombra que liberta a paisagem ― esse lugar limite, aqui, dentro da casa, do livro, da pedra, da inscrição, da escultura, no interior da penumbra de um movimento traçado lento, mas aberto e livre. Quem sabe esta não seja uma outra maneira de contar a mesma história de sempre ― Ítaca!
Ficha
descritiva
Autores: António Alves Martins (textos, fotografias e colagens digitais),
Formato: 23,5 × 28,7 cm.
Oitenta páginas + duas falsas guardas + quatro extratextos. | Capa impressa em cartolina Cromo 300 g, com plastificação mate. Miolo em cadernos de quatro páginas, colado à lombada, e impresso em papel reciclado 100 g [falsas guardas e pp. 1-8, 73-80] e cuchê mate volume 170 g [pp. 9-72]; extratextos impressos em papel sumi-e Hahnemühle 80 g.
Impressão (digital) e acabamento: Offsetarte.
Coimbra, Outubro-Novembro de 2025.
PVP
40 euros [+ portes : correio editorial registado]
pedidos a
(António Alves Martins)
(Susana Paiva)
ou directamente na
Bruaá ― Livraria do Convento de São Francisvo (Coimbra)
































