domingo, 23 de novembro de 2025

Umbria: por fim, o Sul., o sexto título do projecto Artes Breves Edições



 


Umbria: por fim, o Sul. é uma viagem imaginária que, de certa maneira, parece contrariar o horizonte habitual que enquadra as publicações do projecto Artes Breves Edições, isto é, o retrato impresso em livro de uma vivência intrinsecamente urbana. Na verdade, em Umbria, trata-se, por um lado, de um olhar e de um pensamento que circulam entre o exterior e o interior de uma casa, situada quer numa urbe, quer numa pequena povoação – ambas de dimensão pouco significativa e ambas retiradas no interior de um território –, e, por outro, da afirmação de um diálogo íntimo entre o exterior aberto na excessiva luz da planície litoral e o interior sereno de uma habitação singela – enquanto domínio –, reivindicando, assim, a penumbra como o tempo essencial a uma resistência pacífica.



Umbria: por fim, o Sul.


Toda a gente sabe que o Sul começa ali, naquela margem deste rio.


Nós, aqui, não sabíamos ― vivíamos 

a leveza de uma excessiva luz, sem rodeios, nessa estrada cujo fim acontecia onde e como tinha de ser: de costas para o Norte, olhando o Oeste ― no Sul, esse onde tudo começou, 

«quando o apelo da noite marcava os ingénuos pássaros diurnos que éramos 

experimentando o limite quase perfeito de provocação da morte».




Este livro começa com uma história de palavras, umas mais antigas, outras nem tanto: primeiro, uma citação, incontornável na certeza geográfica de um território; depois, a afirmação, breve mas certeira, de uma juventude agarrada à intensidade da energia do corpo, da emoção à flor da pele, da entrega à absoluta inconsciência do instante vivido como eterno retorno nos intervalos violentos, violetas, de sombra e luz litorais; a rematar, memórias de uma crónica escrita já no início do século vinte e um ― palavras que remetem para os tempos imediatos à experiência de Abril: a de uma liberdade livre. A elas se irão juntar, intercalando-as, as imagens ― quase todas a partir de fotografias, analógicas e digitais, algumas a outras associadas («coladas», por assim dizer). Por fim, as palavras marcarão o lugar e o Sul poderá, então, ser aí, como segue.

 

 

Aquela estrada era via de sentido único, plano, rectilíneo, veloz  havia uma pressa cega em chegar. A chegada era o início de outro movimento, este circular, em espirais de oiro e azul reacendendo, literalmente, a luz de um oriente perdido ― uma vertigem, um sem-sentido que escapava às palavras que fluíam mais fortes que os ventos das tempestades de chumbo, repentinas, ao crepúsculo, olhando um oeste impreciso. O tempo desse olhar era a antecâmara de um vazio, ainda impossível de vislumbrar para todos aqueles que viviam imersos nesse ritmo de tão excessivo sentir o tempo da utopia.

 

 

Foi o pressentimento de que esse vazio cego seria raiz de aniquilamento sem remédio que levou Adriano, no derradeiro regresso do Sul, já com os ritmos dos anos oitenta em fundo, a um desvio inesperado do rumo que habitualmente tomava. Ao voltar-se, agora, para leste, escolhia não só o desconhecido do interior do território, mas também de si mesmo. Arriscava, entregando-se com agradável surpresa à monotonia linear da paisagem, arrastando-se lento nos seus desníveis ilusórios, vivendo ainda a turbulência dos sinais que recordavam o mundo urbano de um passado não tão longínquo. Parou numa cidade que lhe pareceu ter a medida certa ― como, por exemplo, Mértola. Aí permaneceu por alguns anos, poucos, entre muralhas, numa casa de divisão única, com um simples postigo aberto na porta de entrada, ponto exclusivo de uma luz mínima, mas, mesmo assim, demasiado branca. Sabemos que esses tempos foram também tempos de descoberta de certas palavras, porventura influência dos vestígios de uma escrita do Sudoeste que imaginara traçada nos veios das falésias negras daquela praia que deixara, parecia-lhe agora, de vez. Primeiro, as palavras saíam com a urgência imperativa do vómito que salva da intoxicação aguda; depois, hesitantes, foram tomando o ritmo sereno e seco que era o da penumbra interior da casa, como o respirar do seu silêncio, vibrando nos ínfimos pontos de pó dançando suspensos nos intervalos da luz que penetrava as frestas do telhado; por fim, quando a rua começou a cobrar o que lhe era devido (herança de memórias antigas), lançou-se na elaboração refinada de algumas crónicas, curtas, publicadas, já no século seguinte, ironia das ironias, por uma editora do Norte (numa das páginas finais, o «editor» dá a informação de que o caderno manuscrito terá sido encontrado no Hotel Beira--Rio, provável local de estadia de Adriano nos últimos tempos de Mértola).

A permanência neste lugar foi um tempo de passagem: das memórias de um litoral alucinante e suicida amarrado à excessiva luz, a um intervalo plano, raso, em que o pensamento se dilui na claridade única e sem sombra da paisagem, até à permanência na penumbra, selando cicatrizes. 

A saída da cidade poderá ser descrita como aquele momento de fronteira e abertura em que o arco pressente, tenso, a chegada do arqueiro.





A CAPA E ALGUMAS DAS IMAGENS



































































































































































                                  E na úmbria

                                 A flecha ― saeta ― deixou o arco.


I

De Adriano não houve mais notícias (ainda segundo a nota à edição citada). Mesmo assim, correu sorrateira a hipótese de uma possível ida para Beirute, ou Adém, ou a Ilha de Moçambique, em trânsito para Madagáscar... Mas isso, para o que aqui me interessa, não tem a mínima relevância. Poderei simplesmente continuar a imaginá-lo, como até aqui, agora dirigindo-se mais para sul, parando demoradamente numa pequena e anónima localidade, fronteiriça e litoral. Não custa desenhar-lhe uma casa, pequena, não isolada mas de fachadas quase cegas, uma única abertura, uma porta que dá para um pátio com cobertura de cana; neste, alguns vasos com cactos de um verde desmaiado e o impreterível aroma flutuante e intenso do jasmim; juntemos duas divisões, uma açoteia, e temos o cenário perfeito para pensar a história que acabou de ser contada ― é dela que falam estas e as anteriores palavras, as quais antecedem e seguem o conjunto de imagens colocadas em sequência, com as determinações inequívocas das opções tomadas, quer em termos de coloração, quer de disposição, quer de dimensão.
Fizemos a estrada, traçámos a viagem, por fim parámos. E assim, fechando a porta ao calor da excessiva luz ― mas preservando sempre a sua memória em filigrana ―, chegamos ao tão desejado Sul.


II

Ao tempo no interior do território meridional ― caótico de excessiva luz, de excessivo calor (e frio invernal), de excessiva e imensa solidão de horizontes sem fim, de um quase insuportável silêncio invadido de quando em vez por inesperados ruídos metálicos e animais da paisagem ― resiste-se, espontaneamente, vivendo uma entrega voluntária às alucinações de um pensamento em espiral, cada vez mais branco, cada vez mais sem palavras, escolhendo a mudez como opção última. Se se lhe sobrevive, a longa convivência com o silêncio das pedras nesses dias infernais permitirá saber escutar os ecos de memórias na aparência indecifráveis, e escrevê-los ou passá-los a traços singelos que repliquem o ritmo linear das planícies, como os relevos e sulcos que a cal deixa transparecer nas paredes das casas e dos muros, verticais, agarrando a terra firme.
Mas tudo isto, para ser intrinsecamente real, terá de acontecer dentro da sombra do mundo ― a casa ―, pois só desta maneira o olhar poderá preencher o vazio da paisagem lá fora e recuperar o ritmo dos gestos de uma escrita antiga, inscrita nas pedras milenares das planícies abandonadas. 


III

Na casa fechada e mergulhada na sombra, o mundo exterior é vivido como memória interior ― o espaço torna-se tempo. É neste sentido que os fragmentos dispersos de outrora ganham um novo corpo, dispostos agora segundo a orientação que os intervalos brancos das páginas «colocam» à disposição quer das palavras, quer dos traços que o desenho imagina numa liberdade primitiva, quer das fotografias, transformadas, ou não, segundo a viagem dos sentidos.
Escuta-se o que não se vê, e o recolhimento, na ilusória imobilidade, abre para o domínio das paisagens interiores repletas de indícios ― vozes, murmúrios, imagens difusas de matérias várias. O Sul não se esgota na imensidão do espaço que então imaginávamos sublime, infinito, inefável. Mais que tudo isso, ele é um tempo, agora vivido como imensidão interior no isolamento da sombra que liberta a paisagem ― esse lugar limite, aqui, dentro da casa, do livro, da pedra, da inscrição, da escultura, no interior da penumbra de um movimento traçado lento, mas aberto e livre. Quem sabe esta não seja uma outra maneira de contar a mesma história de sempre ― Ítaca!









Ficha descritiva


Concepção, desenho de página, edição e produção: António Alves Martins.
Autores: António Alves Martins (textos, fotografias e colagens digitais), 
[Rui Chafes e Gil de Carvalho (epígrafes)].
Formato: 23,5 × 28,7 cm.
Oitenta páginas + duas falsas guardas + quatro extratextos. | Capa impressa em cartolina Cromo 300 g, com plastificação mate. Miolo em cadernos de quatro páginas, colado à lombada, e impresso em papel reciclado 100 g [falsas guardas e pp. 1-8, 73-80] e cuchê mate volume 170 g [pp. 9-72]; extratextos impressos em papel sumi-e Hahnemühle 80 g.
Tiragem (edição única) de 47 exemplares (+ 5 extra-série), todos numerados e assinados.
Impressão (digital) e acabamento: Offsetarte.
Coimbra, Outubro-Novembro de 2025.



PVP

 

40 euros [+ portes : correio editorial registado]

 

 

pedidos a

 

artesbreves@gmail.com

(António Alves Martins)


 theportfolioproject@gmail.com 

(Susana Paiva)



ou directamente na


Bruaá  Livraria do Convento de São Francisvo (Coimbra)