Algumas palavras (iniciais),
escritas no fim
de um processo de produção
Desde o seu início, o projecto de livro Traço Viagem Insular Memória esteve envolto não por uma atmosfera de tranquilo silêncio, mas sim por uma indelével turbulência própria do tempo de uma memória fracturada. Por esta e outras razões, mas principalmente esta (uma memória alinhada com o incerto, o estranho e o inesperado), o encontro com as palavras de Álvaro Lapa foi tocado por um forte sentido de epifania; propícias, elas não deixaram de ser premonitórias: «Tudo o que viesse parar à ilha deserta era aproveitável» (Textos. [Lisboa:] Assírio & Alvim, 2006, p. 124).
Se, no princípio, isto é, no tempo da ideia, estas palavras foram essenciais na clarificação de uma linha de rumo (com as suas margens e periferias próprias), elas não deixaram de permanecer, qual alicerce subtil: primeiro, nas fases de pré-impressão e impressão (nas opções de sequências de imagens que iam sendo tomadas, nas decisões de ajustamento de cores, de equilíbrios nas linhas de composição das colagens, aceitando, ou não, à boca da máquina, alguns imprevistos próprios dos mecanismos e da atmosfera ambiente); depois, e por último, na recepção do livro impresso e acabado: refiro-me à assumpção, como trabalho na obra, dos desvios da dobra patentes em algumas páginas. Tudo, mesmo o que à partida pode ser visto como desvio, foi tomado como parte integrante da obra. Se assim não fosse, o momento derradeiro desse «traço viagem» seria irremediavelmente rasurado, isto é, não haveria outra oportunidade de o livro poder ser dado à estampa nos tempos mais próximos (e tal como fora pensado). Há um tempo próprio para tudo acontecer e ser aí o que é no movimento essencial, na relação dinâmica com tudo. Com isto que digo, mais uma vez reconheço o sentido de afirmação inerente a uma dimensão única de amor fati.
Damos assim início à fase de pré-venda, com a verificação e numeração dos exemplares disponíveis, de maneira que, em finais do mês de Outubro, princípios de Novembro, tenhamos livros prontos para os leitores interessados.
De momento, aqui fica a Nota de Abertura, o texto do editor-autor, e algumas das imagens constituintes da obra (mais adiante faremos uma publicação mais pormenorizada).
TRAÇO
VIAGEM
INSULAR
MEMÓRIA
reúne
fotografias e colagens de António Alves Martins,
desenhos
a tinta-da-china de António Luís Catarino,
quimigramas
e cianotipias de Susana Paiva.
São
imagens-memórias traçadas ao longo
de
uma viagem, por vezes imaginada, à volta de uma ilha.
Sem
ser a mesma, a ela se poderão aplicar,
sem
risco de distorção, as palavras de Álvaro Lapa:
«Tudo
o que viesse parar à ilha deserta era aproveitável».
Os textos são assinados pelos respectivos autores.
«Olho para trás e não encontro palavras para dizer o que não vejo, nem recordo. Colapso. Diante de mim, o caminho aberto do não traçado.
A memória, para ser perfeita, necessita de estímulos, externos, à primeira vista. Por isso, escuto o que vejo e toco na bagagem que me acompanha: um livro impresso, um conjunto de diapositivos, uma série de fotografias, colagens, rolos, canetas, lápis, pincéis, bisnagas de acrílico... Tudo parece apontar para um universo imagético disposto a um jogo de incertas combinatórias, cruzando diferentes modos de pensar o encontro com a matéria vital – o mundo. Para aí chegar, o corpo será sempre uma das portas, a primeira, talvez.
A partir do pormenor de uma fotografia – o qual, com o virar da página, se abre ao lugar que o constitui enquanto mistério – traço (a) viagem (de uma) insular memória.
Esta história, enquanto viagem, começa com a leitura de um livro publicado em 1966. Com texto de Alexandre Lobato (desenhos, aguarelas e fotografias a cores de Mário de Oliveira; documentário fotográfico de Carlos Alberto e João Marques Caetano; arranjo gráfico de Seabra Leiria), a obra oferece-nos uma ampla perspectiva do panorama estético da Ilha de Moçambique.
Depois da leitura (provocada por uma viagem a Moçambique, em 1991), tive oportunidade de fazer uma segunda viagem, a qual incluiu uma curta estada na Ilha. 1993 é a data dessa visita, e os danos causados pelas guerras de que Moçambique fora vítima — antes e depois da independência — faziam-se ainda sentir, na Ilha com um impacto muito particular, realidade que os diapositivos então realizados por demais evidenciam: ruína, abandono, esquecimento, mas também imaginação e resistência.
Entre 1993 e 2016 não recordo nenhuma preocupação especial da minha parte com o fazer fotografia, apenas uma atenção demorada com séries de imagens (de que não era autor) enquanto se pensava a sua sequência nas páginas dos livros cuja edição ia acompanhando.
Foi a memória, ou a violência vivida da falta dela, que impôs a necessidade de um regresso não premeditado à fotografia, agora enquanto «autor», num registo centrado em peculiaridades materiais do espaço urbano, ancorado numa ideia quase obsessiva: fotografar o tempo das matérias e imprimir essas provas em papel, tendo sempre em vista a sua combinação em séries nas páginas de um livro — isto é, encontrar relações que abrissem ao leitor viajante a perspectiva do tempo de um lugar.
Esta foi a maneira — materialmente mais sentida — que me abriu o reencontro com o mundo (mesmo quando este se oferece na sua peculiar estranheza) e ela traduz, no essencial, a origem do projecto Artes Breves Edições, cujo quinto título, de uma série de sete, aqui se apresenta.
Traço Viagem Insular Memória não deixa de ser a continuação possível, mas inevitável, desse outro livro, escrito vai para quase sessenta anos, no ímpeto que brotou da sua leitura, no ritmo demorado da ideia que desencadeou: primeiro, com a viagem à Ilha de Moçambique, em 1993; depois, e de maneira algo inesperada, com uma outra viagem, ao longo do ano de 2023, esta sem sair daqui.
Aquando da visita à Ilha, o meu objectivo era registar com a câmara fotográfica alguns pormenores daquele lugar quase mítico (previamente seleccionados e traçados a caneta em desenhos-esboços enquanto documentos de campo), de modo a poder estabelecer pontos de diálogo e/ou de ruptura com as fotografias impressas no livro de Alexandre Lobato et al. — o resultado desse trabalho poderia vir a ter eco em diferentes propostas de estudos a desenvolver ou de publicação (em livro).
Os anos passaram, as ideias baralharam-se, os desenhos-esboços perderam-se, mas os diapositivos, esses, teimaram em resistir à dissolução própria da matéria que os constitui, nos trinta anos por que passaram, por vezes, em situações extremas de puro abandono e quase esquecimento; no fundo, souberam preservar a matéria e aguardar o dia para aderir ao movimento que agora anima estas páginas — numa edição pensada como o traçar do caminho de uma memória que se recupera, a partir do sentido que se descobre, por ela, nas imagens de um presente que escapa.
É uma viagem no tempo aquela que aqui se apresenta. A partir de uma selecção de fotografias de 1993 (em que se incluíram algumas, a preto e branco, do livro de 1966), António Luís Catarino traça a singularidade do tempo próprio do desenho na delicadeza subtil da tinta‑da‑china, num olhar que traz de volta a preparação de ontem nos desenhos feitos hoje. São esses desenhos que antecedem o registo de uma série de fotografias de tempos e lugares mais próximos (fotografados entre 2016 e 2023: Coimbra, Istambul, Lisboa, Split, Veneza...), dispostas numa sequência construída ao ritmo dos encontros sem propósito estabelecidos com as imagens da Ilha obtidas a partir da digitalização dos diapositivos de 1993 — são imagens de distintos tempos e geografias confluindo num pensamento determinado: as ruínas, o esquecimento, a fractura, a ferrugem que «nunca dorme» dizem um mesmo tempo de suspensão que tem implícitas as possibilidades inerentes à matéria em trânsito, ao movimento próprio de uma imanência única que pode ainda ser a nossa. A este conjunto, segue‑se uma série de outras imagens, estas da autoria de Susana Paiva (natural de Moçambique), uma entrada pensada como registo de uma eventual pós-memória — as quimigramas e cianotipias que a autora nos deixou parecem querer fazer esquecer esse tempo primeiro, rasurando a memória na diluição de qualquer referência explícita ao lugar.
No final, que «ilha» é essa que tantas histórias atravessam?
É-me quase impossível sentir a materialidade própria do tempo da Ilha que as imagens que agora vejo me dizem ter sido vivido. Porém, recordo, nítido, o gesto do olhar que as fixou no disparo mecânico que rompia o silêncio da luz que traçava na terra o pó vermelho-ferro, ou ainda o grito no reflexo do céu que era o azul daquele mar índico, quieto entre as tempestades.
Mas sei que só posso sentir tudo isto assim, agora, quando encontro indícios desse mesmo gesto de ontem no olhar que permanece nas fotografias feitas muitos anos depois, viajando outros tempos e vivendo outros lugares; ou no ritmo leve do traço dos desenhos de António Luís Catarino, ou na vibração sentida das imagens de Susana Paiva, própria de um gesto que não escapa à memória da luz.
A «ilha» esqueceu o deserto e tornou-se livro, lugar vivo e aberto ao trânsito das imagens que trazem de volta o mundo, este, cuja matéria nos é cada vez mais ausente.
O corpo não esquece. Esta história não acaba aqui.»
ANTÓNIO ALVES
MARTINS
algumas imagens
[As colagens de António Alves Martins, os desenhos de António Luís
Catarino
e as obras-imagens de Susana Paiva
foram pensados e realizados em
exclusivo para esta publicação.]
Colagem (com citação de imagem in Ilha de Moçambique: Panorama Estético, de Alexandre Lobato et al.) e fotografia de António Alves Martins (2023) a partir de diapositivo (1993).
Colagem da autoria de António Alves Martins (2023): acrílico sobre
fotografia criada a
partir de diapositivo de 1993.
No litoral, com perspectiva da Fortaleza de São Sebastião. Desenhos a tinta-da-china de António Luís Catarino (2023).
Perspectivas do Palácio de São Paulo (antigo Palácio dos CapitãeGenerais). Desenhos a tinta-da-china de António Luís Catarino (2023).
Pousada da Ilha e entrada da Fortaleza de São Sebastião. Desenhos
a tinta-da-china de António
Luís Catarino (2023).
Interior da Fortaleza de São
Sebastião. Fotografias de António Alves Martins (2023) a partir de diapositivos (1993).
Uma ruína ancorada na laguna
(Veneza). Fotografia de António Alves Martins (2022).
Imagem da autoria de
Susana Paiva (2023).
Imagens da autoria
de Susana Paiva (2023).
NOTÍCIAS BIOGRÁFICAS
António Alves
Martins
Lisboa, 1959.
Professor de
Filosofia no ensino secundário público (1983-1989).
Responsável
pelas colecções de poesia em Centelha/Fora do Texto (Coimbra), tendo publicado
obras de Gil de Carvalho, Alberto Pimenta, Jorge de Sousa Braga, António Ramos
Rosa, Constantin Cavafy, Philip Larkin (1986-1989).
Assistente
editorial em Edições Cotovia (1989-1993).
É autor de
uma colectânea de crónicas urbanas – Cidades Materiais –,
publicada pela Deriva Editores (Porto, 2016).
Coordena a
produção editorial de livros, edita e revê textos que lhe confiam.
Desde 2020,
desenvolve o projecto Artes Breves Edições, com o qual procura, através dos
livros impressos que publica, encontrar relações de sentido estético entre a
palavra escrita e as imagens, fotográficas ou outras, a partir da experiência
do tempo de um lugar de natureza urbana.
António Luís
Catarino, nascido em
Coimbra, embora com ligação forte ao Porto onde leccionou durante 20 anos.
Nesta cidade fundou a Deriva Editores. Sempre desenhou, quer banda desenhada
quando estava na faculdade, quer traços de impaciência em reuniões
improdutivas. Hoje, está convicto que é o desenho que comanda os seus gestos e
não o contrário. Aos desenhos juntaram-se, algo entusiasmadas, as colagens
avulsas que vai encontrando aqui e ali, rasgando livros, revistas e jornais com
o prazer inerente ao necessário gesto de destruição. Como absorveu leituras a
granel não dispensa a palavra ou a letra que chama, por vezes e sempre
educadamente, para o desenho. Não tem pressa nenhuma. Nos últimos quatro anos
realizou duas exposições de pequenos desenhos sobre anjos malditos e
surrealistas/abjeccionistas portugueses que povoaram o território. Tem
ilustrado revistas e jornais libertários como a Flauta de Luz, A
Ideia e o Jornal Mapa.
Susana Paiva [
Moçambique, 1970 ]
Reside e trabalha em Lisboa.
Criadora, performer, editora e produtora de projectos e
eventos na área das Artes Visuais.
Residências Artísticas nos «Rencontres de la Jeune
Photographie Internationale» [ Niort ] na Ferme d’en Haut [ Lille ] e na «Cité
U» [ Paris ], em França.
Residências Artísticas em «Pedra Sina Residence» [
Funchal ], na Córtex Frontal [ Arraiolos ] e na
RAMA [ Maceira ], em Portugal.
Exposição Individual «Corpo Volátil» no Centro Cultural
de Belém, em Lisboa, Portugal.
Exposição Individual nos «6ème Rencontre Internationale
de la Photographie, em Ghar El Melh», Tunísia.
Exposição Individual «What remains – a invenção da memória» no Mês
da Fotografia do Barreiro, Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, Portugal.
Exposição Individual «Lugar de mim» na Casa da Escrita, em Coimbra, Portugal.
Exposição individual «Unidade mínima» no Centro
Interpretativo do Tapete de Arraiolos, em Arraiolos, Portugal.
Coordenação da Exposição de Artes Visuais «Aproximar-nos do Caos
[com umas lentes
que permitam ver melhor o que isso é]» na Galeria ACERT, em Tondela, Portugal.
Apresentação do projecto performativo «Anatomia de uma imagem
[uma instalação habitada]» no âmbito do Festival CITEMOR 2019,
Montemor-o-Velho, Portugal.
< https://www.susanapaiva.com/
>
FICHA TÉCNICA
Impressão digital. | Formato: (L.) 20,5 x (A.) 26,5
cm. | 80 páginas, reunindo fotografias e colagens de António Alves Martins, desenhos a tinta-da-china de António Luís Catarino, quimigramas e cianotipias de Susana Paiva (os trabalhos de António Luís Catarino e de Susana Paiva foram pensados e realizados em exclusivo para esta publicação. | Capa impressa em Notturno preta 300 g. |Miolo em cadernos de doze páginas,
impresso em papel recicado 100 g e couché mate volume 170 g. | Tiragem (edição única) de 150
exemplares (+ 10 extra-série), todos numerados. | A concepção, o
desenho de página e a produção são da responsabilidade de António Alves Martins|Artes
Breves Edições.