terça-feira, 29 de novembro de 2022

os textos de «um parque envolto em silêncio»

 






«[N]essas horas apoderava-se dela um leve inebriamento
e uma plenitude de vida, os pensamentos, mesmo os das coisas mais banais,
afastavam-se da superfície e mergulhavam nas profundezas
e os acontecimentos do mundo soavam distantes
como o ruído para lá dos muros do jardim.»

 

O lugar é uma mancha oblíqua delineada no centro do mapa da cidade. Nesse estado de puro traço permanece, à margem. A margem é o seu reduto, o último, espaço de resistência para o grito entre as tempestades cíclicas. Também o seu silêncio. O que podemos ver quando nele decidimos entrar — decisão que implica a ponderação séria dos riscos (?) —, ou quando olhamos as imagens que dele depois construímos para o reafirmar, sugere-nos a ideia de que este lugar poderá ter sido pensado, desenhado e criado única e exclusivamente como destino para todos aqueles que nele se atrevam a entrar com um único propósito — esquecer, mesmo que por instantes, o mundo que resta para lá dos muros invisíveis. Só desta maneira serão capazes de escutar o que essa ausência liberta.

Foi ela quem assim me falou deste lugar, um parque que é também jardim. A sua chegada coincidira com o tempo da leitura de um livro há muito esperada. O autor do livro era estrangeiro, e assim também o sentimento dela em relação ao tempo próprio deste mundo, fugaz, movendo-se com a persistência de uma sombra em busca de uma figura perdida; o sentimento, não, esse permanece, nela e em mim, aqui, nesta cidade, o mundo de agora.
«Agora é a tua vez», disse. «Terás de ser tu a recolher os vestígios, as imagens que queimam; apenas essas contam, apenas essas podem ser impressas. Não esqueças as palavras dos dias passados, as mesmas de hoje: “o negro do grito queima o branco”».
Não esqueci. Recordei ao longe a experiência vaga de um lugar à margem do tempo, circular, ausente o tumulto das memórias. «Não há nenhum portão, mas nós não entramos», dizem. Dizer não a isto. Urgente retomar o outro caminho. Todos os dias, pela manhã, não cedo. Entro.

Não hesito. Existo, quando saio para escolher como ponto de entrada aquele que me levará, quase sem desvio, ao que quero: o nó das perspectivas circulares.
Para aí chegar, percorro o canal aberto na terra abandonada, plena de restos, de vida em suspenso, de sombras pétreas fracturadas, decapitadas, restos de crânios vegetais sussurrando num horizonte de raízes sufocadas. No final, o canto das águas subterrâneas apaziguará a inquietação do olhar que vinha acompanhando os passos — em volta, o ritmo das sombras quietas falará mais alto.

O espanto é um ponto de fractura que irrompe súbito no movimento do pensamento — abala-o, suspende um nexo, abre um intervalo. O movimento gerado à volta de um ponto em suspensão cria sempre  um rasto, uma linha que se fecha e abre em círculo quando repete, por exemplo, os tons de uma dança hipnótica, a espiral absorvendo a vertigem. Uma pausa. O silêncio instala-se no centro que o círculo em negro desenha, cerca. «Escuta a respiração lenta da luz que dessa fenda brota.»

Tudo neste lugar parece contrariar a tendência para o movimento necessário ao espanto; mesmo as superfícies incertas, os desníveis abruptos, os planos inclinados apontando o vazio, o nada do abismo pressentido. Mas não. Aqui, passado o deserto das ruínas, esquecido o cheiro do ambiente em decomposição, putrefacto, o inesperado chega, leve, sem pressas, o ritmo simulando o equilíbrio dos gestos cuidados que o caminhar sobre um lago gelado que se desconhece exige. Ao longe, rasgando em câmara lenta a verticalidade dos troncos secos das árvores solitárias, uma linha vai traçando, ténue, o movimento oblíquo de um silêncio subtil que explode, quando, pela direita, somos surpreendidos pelo que parece ser uma ressonância, um duplo fechado num abraço citando o outro, fronteiro. Estamos no ponto em que o nó das perspectivas circulares nos prende à terra, vórtice de uma marcação triangular ligando os elementos ar, fogo, água. «Vislumbrarás os primórdios», dissera ela. 
O momento desejado é agora. Quando o tempo do mundo da cidade se cala, vive-se o silêncio de uma ausência que se deseja, as memórias apagadas, a impossibilidade da imagem, o tempo que as palavras não podem dizer, não sabem por que esqueceram a hipótese da linha que traça a diferença, a oposição que instaura o sentido. O pensamento, esse, inspira, em repouso, o sopro vital que aqui tudo atravessa: «apesar de tudo / continuamos a repetir os gestos e a beber / a serenidade da seiva — vamos pela febre / dos cedros acima — até que tocamos o místico / arbusto estelar / e / o mistério da luz fustiga-nos os olhos / numa euforia torrencial».

Sempre que saio sinto que trago inscritos sob a pele os esboços ingénuos de algumas imagens — aquelas que, imagino, me darão mais tarde a possibilidade de continuar a ser no tempo deste mundo em que arrisco.

                                                                  

Respiro a manhã húmida no ar que me atravessa e inspiro-me, literalmente, no sopro que preenche este assombroso silêncio vegetal; nele permaneço, como suspenso, entre dois tempos e duas tempestades.

                                                                        

Eles – os que me pensaram – não sabem, mas eu, sendo parte de um destino que lhes escapa, resisto. Mesmo nas ruínas, brotando a uma cadência cada vez mais regular nos caminhos que me cruzam; ou mesmo nas clareiras, iluminando silenciosas o desespero da noite cerrada. E embora umas e outras se assemelhem a feridas expostas às intempéries provocadas pelo esquecimento dos homens, pela sua vertigem sem assombro, mesmo assim, nessa condição de puro vestígio, elas são ainda a maneira de o meu tempo se abrir na dimensão única que só assim pode ser livre.

 

 

nota 
Os textos são da autoria de António Alves Martins, com as seguintes excepções:  a epígrafe no verso da capa é de Robert Musil (O Homem Sem Qualidades, tradução de João Barrento, Dom Quixote, 2017, vol. 1,   p. 154); a citação que começa «apesar de tudo» foi retirada do poema «Vestígios», de Al Berto (O Medo, Assírio & Alvim, 1997, p. 578); a citação «Não há nenhum portão, mas nós não entramos», foi retirada de um artigo da autoria de Rafael Vieira, intitulado «A Sereia que todos queremos e desejamos», publicado por Coimbra Coolectiva, em 28 de julho de 2022, e disponível online em https://coimbracoolectiva.pt/2022/07/28/jardins-da-cidade/.